O Superior Tribunal de Justiça (STJ) atingiu em 30 de abril deste ano a marca histórica de 1 milhão de habeas corpus recebidos desde sua criação. O número impressionante levanta questionamentos sobre o uso adequado deste instrumento constitucional, originalmente concebido para proteger a liberdade de locomoção.
Enquanto os primeiros 500 mil habeas corpus levaram 30 anos para serem alcançados, os 500 mil seguintes foram impetrados em apenas seis anos, demonstrando um crescimento exponencial no uso deste recurso jurídico. Atualmente, na Terceira Seção do STJ, responsável por matéria criminal, quase 70% dos casos analisados são habeas corpus.
Da proteção à banalização: o uso desvirtuado do habeas corpus
Entre os casos que chegam ao tribunal, muitos fogem completamente da finalidade do instituto. O presidente do STJ, ministro Herman Benjamin, classificou como "inusitado" um pedido recente que solicitava a prisão do presidente da Rússia, Vladimir Putin – uma contradição à própria natureza do habeas corpus, criado para garantir liberdade, não para restringi-la.
Outros exemplos surpreendentes incluem pedidos para impedir a cantora Cláudia Leitte de participar de uma audiência pública, invalidar um pregão eletrônico do TST, obter porte de arma para guardas municipais e até mesmo uma "licença para beber e dirigir" através de um habeas corpus preventivo contra o bafômetro.
"Habeas corpus não é instrumento para brincadeira, para passar o tempo vago, para chicana judicial, para ganhar cinco minutos de fama, para travar o funcionamento do Judiciário", afirmou o ministro Herman Benjamin ao aplicar multa de R$ 6 mil a um impetrante que reiterava pedidos sem qualquer base legal.
Raízes históricas e desafios atuais
O uso ampliado do habeas corpus tem raízes históricas no Brasil. O ministro Ribeiro Dantas, relator do HC 1.000.000, explica que a Constituição de 1891 não restringia expressamente o habeas corpus à proteção da liberdade de locomoção, o que permitiu uma interpretação mais abrangente. Mesmo após a limitação constitucional em 1926, o instrumento já havia se consolidado como um "bebê grandão".
A redemocratização e a Constituição de 1988, após um período de suspensão do habeas corpus durante a ditadura militar, reforçaram sua importância como garantia fundamental. No entanto, a legislação processual penal, que data de 1941, não foi adequadamente atualizada para lidar com a complexidade do sistema judicial contemporâneo.
"Nesses casos, o habeas corpus muitas vezes se apresenta como a única via rápida e eficaz, diante de recursos ordinários excessivamente formais, complexos e morosos", explica Ribeiro Dantas.
Descompasso entre legislação e jurisprudência
Para o desembargador Guilherme de Souza Nucci, o problema está na falta de atualização legislativa. "Nós temos que atualizar a lei penal utilizando os próprios institutos que os tribunais estão adotando, para que pare a avalanche de habeas corpus reclamando, muitas vezes, o óbvio", defende.
O advogado criminalista Caio César Domingues de Almeida sugere uma flexibilização que permita à defesa pleitear medidas de urgência diretamente no recurso especial, reduzindo a necessidade de recorrer ao habeas corpus como via alternativa.
Apesar das distorções e do volume preocupante, o habeas corpus continua sendo um instrumento essencial para a proteção de direitos fundamentais, como demonstra o caso de Romário dos Santos, que teve uma condenação injusta revertida graças a uma decisão do STJ em sede de habeas corpus.
O debate sobre o uso adequado deste instrumento constitucional continua, buscando equilibrar a necessária proteção à liberdade com a racionalização do sistema recursal brasileiro.