A inobservância de precedentes do STJ e STF por magistrados de primeiro grau e tribunais estaduais é apontada como um dos principais fatores para o uso excessivo do habeas corpus no Brasil. Esta é a principal conclusão da série "HC 1 milhão: mais ou menos justiça?", que propõe uma reflexão sobre como enfrentar o uso massivo desse instrumento constitucional sem prejudicar seu papel de garantia da liberdade.
Unidade nacional na interpretação jurídica
O ministro Rogerio Schietti Cruz, da Sexta Turma do STJ, destaca que o tribunal utiliza mecanismos como julgamentos pelo rito dos recursos repetitivos e edição de súmulas para orientar a interpretação das leis federais. "Na medida em que fixamos determinadas teses em julgamentos qualificados, elas deveriam ser observadas por todos, criando uma unidade nacional na interpretação de questões jurídicas", afirma.
O desembargador Guilherme de Souza Nucci, do TJSP, reforça que muitos processos seriam resolvidos logo no primeiro grau se os entendimentos consolidados pelos tribunais superiores fossem seguidos, especialmente aqueles favoráveis ao réu.
Racionalização do uso do habeas corpus
Um marco importante na contenção do uso excessivo do habeas corpus foi estabelecido em 2020, quando a Terceira Seção do STJ decidiu no HC 482.549 que, uma vez interposto recurso cabível contra a mesma decisão judicial, o habeas corpus só poderá ser examinado se visar diretamente à tutela da liberdade de locomoção ou apresentar pedido distinto que reflita no direito de ir e vir.
A promotora Fabiana Costa, do MPDFT, defende um olhar específico sobre a real utilidade do HC para sua admissão. Ela observa que, diferentemente dos recursos no processo penal, o habeas corpus chega mais rapidamente para análise do ministro relator, mesmo quando não guarda relação direta com a liberdade do paciente.
Alternativas e propostas de aperfeiçoamento
Entre as propostas para reduzir o número de habeas corpus está a reforma do Código de Processo Penal, com o PL 8.045/2010 em trâmite na Câmara dos Deputados. O ministro Ribeiro Dantas, da Quinta Turma, acredita que essa proposta poderia melhorar a estrutura recursal do processo penal, mas alerta que qualquer modificação deve ser feita com extremo cuidado, já que o habeas corpus é uma garantia constitucional fundamental.
O advogado Caio César Domingues de Almeida sugere a criação, no próprio recurso especial, de um espaço específico para pedidos de tutela de urgência, o que daria mais segurança aos advogados. O desembargador Guilherme Nucci propõe a reforma de leis já defasadas, como a Lei de Drogas, que responde pelo maior número de habeas corpus analisados atualmente nos tribunais.
Apesar das discussões sobre possíveis limitações, o habeas corpus segue desempenhando papel essencial na defesa de direitos fundamentais, como demonstram as decisões do STJ concedendo salvo-condutos para pacientes que utilizam Cannabis medicinal, garantindo assim tanto o direito à saúde quanto à liberdade.